KEKA WERNECK

A lição da moradora de rua Cleia

por KEKA WERNECK

07 de Agosto de 2019, 13h26

A lição da moradora de rua Cleia
A lição da moradora de rua Cleia

A enorme repercussão do caso da moradora de rua de Cuiabá que ajudou um cego a atravessar a avenida, por um instante, tirou essa população da invisibilidade. O vídeo da cena, feito pelo jornalista Luiz Vieira, viralizou no país, devolvendo humanidade à Cleia e seus colegas.  A notícia, publicada no #Rdnews,  teve quase 2 mil compartilhamentos e alcançou mais de 100 mil leitores.

Esse grupo de moradores de rua anda por Cuiabá, a qualquer hora do dia e da noite, eventualmente pede no trânsito, outras vezes é visto dormindo em papelões debaixo de marquises. É sempre associado a drogas, álcool e criminalidade. Conta quase sempre com a fidelidade de um cão sarnento. No limite, há os que o considera de vagais, gente que não procura um emprego. No extremo, tem quem ateie fogo, achando que não são nem gente.

Os voluntários do projeto Amigos da Sopa dizem que não é bem assim. O projeto é antigo e um dos mais sólidos e duradouros na Capital. Pessoas de diversas profissões, crenças e classes sociais se juntam às quintas à noite para levar comida quente e água aos marginalizados no bairro do Porto. Isso já há 7 anos. Por isso, convivem e observam de perto a realidade dos moradores de rua.

Uma advogada que participa do projeto, Gabriela de Souza Correia, de 37 anos, conhece a Cleia há tempos. A celebridade de agora, que ajudou o cego a atravessar, é inclusive conhecida na região. A advogada Gabriela sempre soube que essas pessoas são seres humanos, passando a experiência de viver na rua. Sobre a Cleia, lembra de um episódio que só reforça a humanidade que há nela. Era aniversário de Cleia e ela contou que nunca tinha tido uma festa antes. O pessoal do Amigos da Sopa se mobilizou rapidinho e buscou bexigas, bolo, refris e vela também é claro. Cantaram parabéns e antes de comer um pedaço do bolo a aniversariante fez questão de partilhar com todos, inclusive frentistas de um posto de combustíveis que estavam trabalhando. Partilha da ceia pode fazer bastante sentido aos cristãos.

"São pessoas", reforça Gabriela. "Dotadas de sentimentos, têm caridade dentro de si, têm fé e crenças, aprendo muito com eles", ressalta.

Outro advogado, na casa do qual a sopa é preparada, Hudson Schmitt, 35, destaca que de tal modo essas pessoas vão se invisibilizando que esquecem até do nome. "Um dia a gente chegou no Porto e perguntou para pessoa: qual seu nome? E a resposta foi: nem sei mais". Hudson ressalta que estas são pessoas como nós, que não se enquadram nas regras ditas como corretas.

Ele lembra do senhor Natanael, já falecido, era alcoólatra. Trabalhava durante o dia e fazia questão de mostrar a carteira de trabalho. Todo final de semana ia para casa da filha, uma pessoa excelente. Morava na rua para não incomodar a família com sua doença, o alcoolismo. Há ou não humanidade nesta preocupação? Há ou não um problema social que precisa ser refletido?

A atitude solidária da Cleia deixa algumas lições. A primeira é que estamos muito necessitados de bons exemplos, nessa maré de tiros para todo lado e discursos de ódio. A segunda é que, sim, mesmo em uma situação difícil é possível tirar os olhos de si para estender a mão a quem esteja precisando também de apoio. A terceira é que, como Cleia mostrou, ninguém é melhor que ninguém? A quarta é que não há uma política clara em prol desses moradores, muitos deles adoentados. A quinta é que, se você não enxerga o outro como um igual, quem pode ter perdido a humanidade é você.

Keka Werneck é jornalista em Cuiabá e editora do site Rdnews. E-mail: [email protected]