O espaço da criança e da infância na política

por Wesley Souza

20 de Julho de 2018, 13h47

O espaço da criança e da infância na política
O espaço da criança e da infância na política

Ao ritmo em que se aproximam as eleições, preparam-se candidatos e cidadãos, cada um a sua medida, para participar do exercício que marca o processo democrático: a escolha de novos governantes. A discussão que permanece emudecida é se de fato todos estão inseridos na política. As crianças, na maioria das vezes, tem sido colocadas a margem do debate ou, então, tem seu local demarcado pelo uso instrumental daqueles que pleiteiam cargos na administração pública sejam nos discursos protecionistas à infância ou em propagandas eleitorais. Um paradigma contemporâneo que, entre outras coisas, decorre da visão social da infância e o que se entende por democracia. Caso haja a suspeita sobre a legitimidade da criança adentrar as esferas políticas ser impensável ou inexequível o, talvez deveria se questionar se essa resistência ao considerá-las sujeitos do processo democrática seria consequência do pensamento embolorado de que a criança continua passiva, sem autonomia de opinião e capacidade construir a própria leitura de mundo foi realmente superado. De fato, o debate sobre os espaços das crianças e infâncias na política custa caro a quem o faz, mas não pode ser óbice para que seja proposto.

Diálogo sobre crianças e infâncias

É comum que grande parte da sociedade considere criança e infância como sinônimos por se tratar de representações do senso comum em um processo de reapropriação pelas relações culturais e sociais. Marcos Freitas, coordenador do Núcleo de Estudos Avançados em História Social, explica a infância como sendo um tempo social e a criança como protagonista nas tramas do cotidiano, ou seja, é uma agente desse tempo. A criança é quem por direito deveria dizer o que é estar na infância, mas, muitas vezes, é o adulto que impõe as normas para que se percorra essa fase vida.

A infância é também uma construção histórica como demonstrou o historiador francês, Philippe Ariès, ao analisar as representações das crianças nas sociedades ocidentais. Pelos registros de Ariès, a criança na idade média era tratada como um adulto em miniatura, ou seja, não tinha suas especificidades reconhecidas e podia circular sem restrição pelos espaços sociais. O tratamento dado à criança foi mudando até que as sociedades industriais a institucionalizaram, ou seja, seus espaços de circulação foram restringidos em grande medida aos ambientes doméstico e escolar. Assim, nas famílias a criança assume o status de filho (a) e é responsabilidade exclusiva dos pais ou parentes mais próximos, no contexto social isso significa a ideia de "desobrigação" da sociedade nos cuidados com as crianças. As escolas foram classificadas instituições seguras para que pais deixem seus filhos (as) e em troca recebem a garantia de que a criança será transformada no futuro adulto idealizado para manter a ordem social. Em outras palavras, o interesse na criança não está no presente, mas naquilo em mais a frente ela poderá contribuir depois de ser formada cidadã.

É possível dizer, então, que as infâncias são múltiplas e influenciadas pelo momento histórico, local em que se vive, classe social a que pertence, bem como outros como etnia, gênero, entre outros. Além disso, a criança faz parte da estrutura social. Isto é, em uma sociedade organizada pelo sistema econômico que visa o lucro como marcador de superioridade e inferioridade entre as pessoas, as diferenças sejam elas de qualquer ordem são transformadas em desigualdades e as relações assimétricas em relação de mando e obediência.

Em outras palavras, a infância vivida na periferia não é a mesma que nos bairros de classes econômicas mais favorecidas. Afinal, o acesso a direitos básicos como chegar à escola, saneamento básico, a oferta de espaços de lazer são, por vezes, restritos justamente aos que mais necessitam. Portanto, reconhecer a cidadania das crianças é valorizar a potência política de suas lutas democráticas como recurso de transformação social. Ao passo que compreender a diferença ente criança, crianças e infância permite pensar políticas públicas voltadas a esse sujeito de direitos, a grupos específicos e proposição e manutenção de direitos a essa categoria social.

Para falar de democracia

O que se entende por democracia pode ser muito diverso, mas basicamente é captado entre o consenso social como regime político que se resume pelo exercício do voto. Alguns mais conservadores defendem a democracia como o regime da lei e da ordem, ou seja, um conjunto de legislação que normatiza a vida em sociedade de modo que o desviante seja punido, em nome do bem estar dos chamados cidadãos bem; tendo o argumento de que o que não está previsto nas leis não merece atenção grupos minoritários tendem a cair na invisibilidade. Para outros com pensamento mais liberal, como afirma a filósofa contemporânea, Marilena Chauí, a democracia é reduzida a um regime político eficaz, que se materializa na escolha e rotatividade dos governantes e nas soluções técnicas dos problemas econômicos e sociais. Porém, para a intelectual com larga produção sobre a política e seus efeitos no mundo atual, a democracia é mais do que isso, é o regime sócio político que organiza a sociedade.

Essa concepção de democracia tem como pilares a isonomia, a igualdade como que todos devem ser tratados diante das leis, e a isegoria que pode ser explicada como a possibilidade dos cidadãos exporem em público suas ideias, vê-las discutidas, aceitas ou rejeitadas coletivamente. A partir desse ponto de vista, cabe questionar se as crianças podem falar na atual democracia? Se sim, o que podem dizer, pensar e apresentar nos ambientes públicos? Indagações que por si só causam desconforto.

Ainda segundo Chauí, somente pela democracia o conflito de ideias é legítimo e a imposição de pensamento é rechaçada pela luta da manutenção e criação dos direitos são mantidos. Portanto, a democracia como regime sócio-político está aberta as mudanças do tempo presente sendo marcada pela soberania popular. Para a filósofa contemporânea, o poder não está nas mãos dos governantes, mas quem o detém é o povo que escolhe se mantém ou não seus dirigentes. Isto é, as eleições não marcam apenas a alternância de governo, mas a vontade soberana popular que confia o poder aquele que escolheu democraticamente para representar a maioria e olhar de maneira atenta e sensível às minorias.

Criança e infância na política

Os cidadãos podem pela democracia participar da vida política ou serem representados. No entanto, quando se fala nas crianças essa afirmação corresponde a realidade? O cenário político até aqui mostra que sua participação permanece reduzida. Quando aparecem, geralmente, estão no colo de candidatos que fazem questão de serem fotografados e filmados com a intenção de construir uma imagem de político responsável, respeitoso e ético por estar aparentemente atento às causas que permeiam à infância. Elas também são usadas estrategicamente pelo marketing eleitoreiro em propagandas obrigatórias e informativos de forma apelativa a sentimentalização, atrelada a ideia de pureza da infância do consenso social, e assim derrubar as resistências que possivelmente o público possa ter em relação ao candidato, de modo a acolher suas propostas e quem sabe tornar-se um eleitor em potencial. Definitivamente, não seriam esses os espaços políticos que deveriam ser destinados às crianças ao reconhece-las como sujeitos de direitos e sua cidadania. 

Em seu texto - Infância e Política - Jens Qvortrup, professor do Departamento de Sociologia e Ciências Políticas da Universidade Norueguesa de Ciência e Tecnologia - Trondheim -, aborda a problemática da participação das crianças na política como sua representação. O estudioso das questões da infância destaca os artigos que versam sobre os direitos das crianças na Convenção das Nações Unidas (ONU) usualmente divididos pelos três Ps: Proteção; Provisão e Participação. As garantias relacionadas à proteção, por exemplo, a segurança, e à provisão como a alimentação são facilmente recepcionadas pelas pessoas. Porém, quando se trata dos direitos de participação, contemplando, a liberdade de expressão que permite a atuação das crianças nos assuntos políticos, segundo o autor, permanecem em um espécie de limbo. No entanto, o artigo 12 da mencionada Convenção preconiza o direito as crianças de expressar livremente suas opiniões sobre os temas que as afetam.

Do ponto de vista da possibilidade de representação na política, as crianças seguem reféns daqueles que se apresentam como amigos ou defensores da infância, mas que nem sempre estão efetivamente preocupados com as questões as interessam. Já que não podem representar a si mesmas na política, resta saber se quem se apresenta como seus representantes se dedicam ao ouvi-las e a lutar por suas demandas. Observando o jogo de interesses do período pré-candidatura tanto no nível estadual quanto federal, é notável a tímida referência às crianças nas plataformas programáticas dos partidos políticos e seus pré-candidatos. Quando são lembradas nas melhores das intenções tem seus direitos obliterados pelos dos adultos como no caso da defesa pelas vagas nas creches para que as mães possam trabalhar e não por oportuniza-las espaços de aprendizagem.

E agora?

Retomando o paradigma inicial, o que está posto não é somente o que se pensa sobre as infâncias e democracia, mas a participação das crianças na política para a efetivação da democracia enquanto regime sócio político. Se continuarem sendo consideradas como bestiais, incapacitadas, separadas do mundo do pensamento autônomo e crítico para se ocupar apenas do lúdico esvaziado do sentido de realidade e habilidade criativa não as coloca só fora do debate político, mas também a margem da própria sociedade.

Caso a criança permaneça sob o olhar capitalista que nada produz e o interesse social sobre elas é apenas na preparação do adulto que será e suas contribuições para a manutenção da sociedade que aí está, a política terá revelado sua face mais mercadológica para elas. O voto torna-se moeda de troca, e a representação é substituída pelo clientelismo ao oferecer serviços públicos e direitos constitucionais em troca de apoio político. Nessa conjuntura de troca de interesses, a criança é desprezada pelos candidatos políticos, afinal não detém o direito ao voto.

De fato, o modo pelo qual a sociedade está organizada: vertical, oligárquica, autoritária e violenta tem afastado as crianças da política. Muitos se levantam ao defender a proteção às crianças da violência, mas compreendendo com Marilena Chauí, todo ato violento é também de violação da humanidade do outro e seus direitos mais básicos e não apenas como a forma da criminalidade localizada nas periferias, a violação do direito à liberdade de expressão das crianças seria percebida como forma violenta de tratamento?

As crianças que a tudo observam e ressignificam encontram sua própria maneira de subverter a ordem adultocêntrica na política. Se o autoritarismo for deixado de lado, as ocupações das escolas que o país assistiu há pouco tempo como foram de resistência e luta pelo direito à educação pública de qualidade pode ser compreendida não como rebeldia ou baderna, mas como demonstração real da capacidade de organização e visão crítica das crianças. A contradição entre a marginalidade e a potência política das crianças nos interroga: qual democracia defendemos e sustentamos? De fato, existe uma diferença aguda na atualidade que precisa ser resolvida entre regime político democrático, em sua forma mais reducionista e superficial nas eleições e a sociedade democrática, onde todos incluindo as crianças tenham seus direitos tratados de forma igualitária, especialmente a participação na política.

 

 Wesley Souza - Mestrando em Educação pelo PPGEdu da UFMT/CUR