OPINIÃO
Por um governo a favor do Brasil
01 de Junho de 2024, 12h00
A República Federativa do Brasil, formada pela união indissolúvel dos estados, dos municípios e do Distrito Federal, constitui-se em estado democrático de direito e tem como fundamentos a soberania, a cidadania, a dignidade da pessoa humana, os valores sociais do trabalho, da livre iniciativa e do pluralismo político. É o que dispõe o artigo 1º da Constituição Federal de 1988. Nossa Carta Magna também preconiza, no parágrafo único desse artigo inicial, que todo o poder emana do povo e por ele é exercido por meio da eleição direta de seus representantes.
De uma forma simplificada, o cidadão comum entende que o povo, através do voto em eleições democráticas e livres, elege seus representantes para em seu nome cobrar tributos da população e devolver o produto arrecadado sob a forma de serviços essenciais, como saúde, educação, saneamento, segurança pública, habitação e atenção social.
Já se passaram 35 anos da promulgação da Constituição Cidadã e, nesse período, o país foi governado por oito presidentes da República, dos quais quatro representantes dos maiores partidos políticos (PSDB, PT, MDB e PL) e com diferentes perfis ideológicos. Cabe, agora, uma indagação. Os presidentes que governaram o país a partir de 1988 cumpriram suas obrigações expressas na Constituição?
A resposta, isenta, sem qualquer viés político, ideológico, partidário ou de mera simpatia é “não!”. Todos fracassaram. E é fácil comprovar essa assertiva. Na educação, o Brasil ocupa hoje apenas a 66ª posição (entre as nações avaliadas pela Organização das Nações Unidas (ONU) por meio do Programa Internacional de Avaliação de Estudantes -PISA 2022). A grande maioria dos nossos jovens não sabe interpretar textos nem resolver os mais simples exercícios de matemática.
Na segurança pública o quadro não é mais animador. Perdemos as guerras para as facções criminosas, milícias, contraventores e outros agentes do crime, a ponto de sermos considerados o 4º país mais violento ou inseguro do mundo, em termos de segurança pública (física e patrimonial), registrando a trágica estatística de 44 mil homicídios por ano.
Quando se trata do maior bem da humanidade, a saúde, embora tenhamos o SUS, que mesmo com limitações orçamentárias tem apresentado bons resultados, os serviços prestados aos cidadãos estão muito aquém das necessidades mínimas da população. São longas as filas para consultas, exames e cirurgias especialidades, muitas vezes custando a vida de cidadãos desesperados. Faltam hospitais, equipamentos e remédios.
Evoluímos quase nada em matéria de saneamento básico e temos uma das piores marcas dos governos dos últimos 35 anos. De acordo com o Censo 2022, 44% da população brasileira ainda não tem acesso à coleta de esgoto. Em 2020, o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) já constatava por meio da Pesquisa Nacional de Saneamento Básico (PNSB) que 39,7% dos municípios brasileiros não dispõem de serviço de esgotamento sanitário, condição com reflexo direto na saúde pública. Matéria publicada no site Poder 360 em março de 2024, com base no Censo 2022, revela que 49 milhões de brasileiros vivem em lares sem acesso a saneamento básico. Isto significa que os dejetos de 24,3% da população são depositados em fossos e valas ou seguem para rios, lagos, córregos ou para o mar.
O direito à habitação, essencial para a dignidade humana, também prevista no artigo 1º da CF/88, tornou-se letra morta. O déficit habitacional ainda é enorme, apesar de programas sociais que não dão conta de atender à demanda reprimida nem atendem a todas as faixas da população.
O Índice de Retorno do Bem-Estar Social (IRBES), indicador insuspeito, retrata perfeitamente a realidade dos serviços essenciais ofertados aos brasileiros. Nele, o país ocupa a última posição (30º lugar) entre as nações com maior carga tributária no mundo. Ou seja, o Brasil cobra muito em impostos (14º lugar no ranking mundial) e retribui pouquíssimo ao cidadão-contribuinte.
Vale a pena destacar que nos últimos 35 anos o Brasil experimentou o aumento de carga tributária bruta em 50% (1988: cerca de 22,5% do PIB e hoje 33,7% do PIB). Significa dizer que não se pode apontar como causa dos fracassos das políticas públicas a falta de recursos financeiros, porque esse argumento não se sustenta.
Não há mais tempo para desculpas, mesmo porque aqueles que concorrem a cargos públicos se comprometem a apresentar soluções. Já passou da hora, portanto, de o Brasil reconhecer seus problemas – muitos antigos, recorrentes – e buscar, de fato, caminhos para resolvê-los ou, ao menos, atenuá-los, sem o que a população de todas as classes sociais e de todas as regiões do país jamais terão uma vida digna. Eis os principais:
1 – Os governantes são eleitos mediante muitas promessas, mas sem apresentar nenhum plano de metas contendo as principais ações (com início meio e fim de cada uma), custos e as origens dos recursos necessários à sua efetivação. A divulgação de um plano durante o período eleitoral ajudaria o eleitor a decidir seu voto e a fazer a cobrança posterior do eleito, tornando mais úteis os vultosos recursos públicos gastos com as eleições.
2 – Resiste a prática comum dos eleitos passarem os dois primeiros anos de seus governos - 50% do mandato – atribuindo culpa aos antecessores, reclamando da ‘herança maldita”. Com isso, apenas tentam justificar suas inações, enquanto a população espera inutilmente por soluções. Quando o cidadão elege o presidente da República, não está lhe dando uma carta branca para se limitar a atacar seus antecessores, mas sim um mandato para implantar um governo a favor do Brasil e de todos os brasileiros.
3 – É preciso reduzir substancialmente os privilégios inaceitáveis usufruídos pelos donos do poder, uma espécie de donatários das “capitanias hereditárias” modernas do século XXI, que vêm drenando centenas de bilhões de reais por ano.
4 – Fundamental também combater a corrupção desenfreada que há décadas vem contaminando o serviço público, desmoralizando as instituições e sugando um volume gigantesco de recursos financeiros, calculado em mais de uma centena de bilhão de reais. No ranking da percepção da corrupção, hoje o Brasil ocupa a 104ª posição entre 180 países, o que significa dizer que há 103 país com setor público mais honesto que o brasileiro. Uma vergonha nacional e péssimo exemplo para as novas gerações.
A Operação Lava-Jato é um exemplo do tamanho da corrupção no Brasil. O Supremo Tribunal Federal (STF) anulou grande parte das condenações dos envolvidos, mas não inocentou os ex-condenados nem concluiu pela inexistência da corrupção. A reviravolta ocorreu por irregularidades ou ilegalidades processuais. É urgente alterar a legislação, tornando imprescritíveis os crimes praticados contra a administração pública para dar uma resposta efetiva à sociedade e mostrar, especialmente aos mais jovens, que o crime não compensa e a corrupção não é meio de vida!
É sempre bom recordar Louis Brandeis, ex-juiz da Suprema Corte norte-americana, segundo o qual “a luz do sol é o melhor desinfetante”. Portanto, transparência total em todas as ações é sempre recomendável.
Cabe ainda relembrar o pensamento do filósofo italiano Nicolau Maquiavel (1469-1527), cujo alerta continua oportuno: “Um povo que aceita passivamente a corrupção e os corruptos não merece a liberdade. merece a escravidão. Um país cujas leis são lenientes e beneficiam bandidos, não tem vocação para liberdade. Seu povo é escravo por natureza. Uma pátria, onde receber dinheiro mal havido a qualquer título é algo normal, não é uma pátria, pois neste lugar não há patriotismo, apenas interesses e aparências.”
5 – Reconhecer que o país tem sido incapaz de cumprir o artigo 3º da Constituição que, com clareza absoluta, dispõe que dentre os objetivos fundamentais da República Federativa destacam-se: a constituição de uma sociedade livre, justa e solidária; erradicar a pobreza e a marginalização e reduzir as desigualdades sociais e regionais, bem como o artigo 5ª, cujo caput traz a assertiva que todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza. É possível alguém acreditar que no Brasil todos são iguais perante a lei? Temos de fato uma sociedade livre, justa e solidária ou uma sociedade injusta com liberdade relativa, diferenciada e completamente egoísta?
Nos últimos 35 anos, não avançamos na redução dos enormes fossos econômicos entre as regiões do país. Já não é mais aceitável o desequilíbrio desenvolvimentista existente no país. O maior exemplo está nas regiões norte, nordeste e centro-oeste, que apesar de reunirem 19 estados e o Distrito Federal, com mais de 82,4% da área territorial do país e serem habitadas por cerca de 45,6% da população brasileira, têm participação de apenas pouco mais de 29% do PIB. Por outro lado, o estado de São Paulo, ocupando apenas 2,9% da área territorial brasileira e com população inferior à metade da habitada nas três regiões menos desenvolvidas do país, produz sozinho cerca de 31,5% do PIB, isto é, mais de 10% do registrado pelos 19 estados e Distrito Federal. Além disso, nos estados do norte, nordeste e centro-oeste, a renda média per capita é inferior à metade da renda nacional. O Brasil está condenando cidadãos à segunda classe pelo critério de onde vivem. Para piorar, as disparidades sociais seguem gigantes, com 1% população mais rica detendo 48% da riqueza nacional.
O fracasso dos governos dos últimos 35 anos, portanto, é evidente. Nesse período, dos oito presidentes eleitos dois sofreram impeachment, um foi condenado e preso após deixar o cargo e posteriormente teve sua condenação anulada, um foi detido depois do mandato e um teve enormes dificuldades para governar diante da pressão interna. O quadro hoje é de um país dividido. A questão política, entretanto, não serve para isentar nenhum deles de suas responsabilidades enquanto estiveram no cargo mais importante do país.
Os objetivos fundamentais da República, elencados no inciso III, do artigo 3º da Constituição Federal, estão longe de serem alcançados. Quem sofre as consequências disso é a população, notadamente a mais pobre.
O país reclama – e não é de hoje – um governo a favor do Brasil, com os cidadãos enxergados como prioridade absoluta o tempo todo.
**Samuel Hanan é engenheiro com especialização nas áreas de macroeconomia, administração de empresas e finanças, empresário, e foi vice-governador do Amazonas (1999-2002). Autor dos livros “Brasil, um país à deriva” e “Caminhos para um país sem rumo”. Site: https://samuelhanan.com.br