OPINIÃO

Carteira de motorista, uma identidade nacional

por Luis Otávio Matias

10 de Janeiro de 2025, 07h00

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Divulgação

No Brasil, o automóvel é muito mais do que um meio de transporte. Ele é sonho, conquista, status, independência, e, não raro, um membro não oficial da família. Essa relação visceral entre o brasileiro e o carro ultrapassa o aspecto prático. Adquirir um veículo, para muitos, é cruzar a linha simbólica entre o "antes" e o "depois", uma transição quase ritualística que traduz o desejo de mobilidade, mas também de pertencimento e realização.

A paixão pelo carro no Brasil tem raízes profundas, que misturam história, cultura e economia. Nos anos de crescimento econômico do século XX, o automóvel era a promessa de modernidade, um símbolo de progresso que chegou a ser exaltado nas propagandas da época. A construção de rodovias, como a Brasília-Belém ou a Via Dutra, consolidou a imagem do carro como veículo de integração nacional. Mas o que parecia ser uma revolução logística logo transcendeu seu propósito funcional e ganhou o coração do brasileiro como uma extensão da própria identidade.

A verdade é que o carro fala muito sobre quem somos, ou quem gostaríamos de ser. Um sedã robusto, um SUV imponente ou até mesmo um compacto econômico carregam mensagens sobre estilo de vida, aspirações e prioridades. Para o jovem que adquire seu primeiro veículo popular, o carro não é apenas um motor com rodas. É liberdade, é independência. Para a família que sobe a serra em um utilitário, o carro se torna um espaço íntimo de conexão, um lugar onde histórias são contadas, músicas são cantadas e memórias são construídas. Há uma poética em cada trajeto, ainda que, por vezes, o trânsito transforme o que poderia ser idílico em um desafio de paciência.

Esse fascínio cultural é, ao mesmo tempo, uma bênção e uma responsabilidade. No Brasil, cada lançamento precisa dialogar com essa psique coletiva que valoriza o design tanto quanto a funcionalidade, que exige robustez para enfrentar estradas esburacadas, mas também deseja um toque de sofisticação para transitar pelos centros urbanos. O brasileiro quer tecnologia, conforto e economia, mas também quer que o carro tenha uma personalidade quase tangível, que converse com seu dono em um idioma silencioso, feito de potência, acabamento e presença.

Ao mesmo tempo, há peculiaridades fascinantes no mercado. O financiamento de longo prazo, por exemplo, permite que pessoas de classes econômicas variadas alcancem o sonho de ter seu carro próprio, ainda que isso signifique compromissos financeiros extensos. Há também o carinho pela personalização, que transforma carros em verdadeiros reflexos de seus proprietários. Seja um adesivo no vidro, um sistema de som potente ou uma pintura vibrante, o brasileiro tem um talento especial para dar alma a uma máquina.

E é justamente por entender a profundidade dessa relação que precisamos nos adaptar a um consumidor que está, sim, mudando. O brasileiro de hoje está mais consciente sobre sustentabilidade, preocupado com eficiência energética e atento ao impacto ambiental de suas escolhas. Modelos híbridos e elétricos já começam a ganhar espaço, mas não é suficiente apenas lançá-los. É preciso trazer soluções que conversem com a realidade do país, onde a infraestrutura para esses veículos ainda engatinha. Mais uma vez, o desafio não é apenas tecnológico, mas cultural: como transformar o fascínio pelo ronco de um motor potente em uma paixão pelo silêncio elegante de um carro elétrico?

Há também a chegada de uma nova geração ao volante, com valores distintos daqueles que moldaram o mercado até aqui. Jovens que valorizam experiências mais do que posses questionam a centralidade do automóvel, especialmente nas grandes cidades, onde o compartilhamento de veículos e o transporte por aplicativos reconfiguram a ideia de mobilidade. Mas mesmo esses jovens, que inicialmente podem parecer desinteressados em adquirir um carro, frequentemente mudam de perspectiva quando chegam os filhos, a casa própria ou a necessidade de fazer aquela viagem tão sonhada pelo interior do Brasil. O carro, de alguma forma, acaba entrando em cena.

E, afinal, como poderia ser diferente? O carro é ao mesmo tempo um espaço físico e emocional. Ele abriga as conversas solitárias, as confidências entre amigos, as brigas de casal e as reconciliações. Ele é cenário de aventuras e testemunha de rotinas. Quantos amores começaram em uma carona? Quantos recomeços se deram ao cruzar a fronteira de uma cidade ao som da música favorita no rádio? No Brasil, o carro é mais do que um veículo: é um catalisador de histórias, um companheiro silencioso em nossas jornadas.

Por isso, inovar no setor automotivo no Brasil exige respeitar essa relação única e multifacetada. É compreender que o brasileiro não compra apenas um carro; compra sonhos, possibilidades e, muitas vezes, uma extensão do que é. Entre uma concessionária e outra, cada assinatura de contrato carrega consigo a promessa de liberdade e a realização de um desejo que, mais do que nunca, reflete a essência de quem somos. Afinal, aqui, as estradas não são apenas trajetos – são cenários de uma paixão que nunca sai de moda.



* Luis Otávio Matias, ex-vice-presidente do Itaú com mais de 30 anos de experiência no mercado financeiro. Formado em Direito pela PUC-Campinas, é atualmente vice-presidente da Tecnobank.