OPINIÃO

Igualdade de acesso ao SUS

por Bianca Botter Zanardi

03 de Maio de 2021, 15h55

None
Divulgação

Nas últimas semanas acompanhamos o aumento exponencial de pessoas com COVID-19 precisando de tratamento, e a busca por leitos de UTI atingiu números assustadores em todo o país. Mesmo com notório esforço para abrir novas vagas , o sistema de saúde, público e privado, entrou em colapso. No momento mais crítico, a espera pela internação chegou a ter 200 pacientes aguardando só no Estado de Mato Grosso (mais de 6,3 mil em todo país, conforme dados do Conselho Nacional de Secretários Estaduais de Saúde, divulgados no último mês).

A elaboração desta listagem é atualizada diariamente pela Central de regulação, composta por inúmeros profissionais que avaliam o contexto global, considerando as prioridades de cada caso, conforme vários critérios médicos e técnicos, de modo a respeitar, de forma igualitária, o acesso de todos os cidadãos ao atendimento à saúde.

A alta demanda por leitos e a inexistência de vagas fizeram alguns pacientes buscarem tratamento por meio de ações judiciais, aumentando significativamente o número de decisões liminares que determinavam a imediata internação do autor, em rede pública ou particular, permitindo que a fila do SUS fosse desrespeitada.

Com hospitais lotados e escassez de profissionais, o sistema de saúde colapsou e se tornou inviável cumprir as decisões judiciais. Não há como retirar um paciente internado para ceder a vaga para outro que judicializou. Sem vagas na rede particular e em outros estados, atender de imediato a todos não era uma opção. Neste contexto, seria justo um paciente, em situação de menor gravidade, ser atendido primeiro, apenas porque teve uma decisão judicial favorável? Em uma das demandas, por exemplo, uma paciente, ao ser atendida, testou negativo para a doença, contudo obteve uma liminar deferida para imediata internação em leito de UTI.

A intervenção do Poder Judiciário, ao não observar diretrizes técnicas e critérios isonômicos de ocupação dos escassos leitos, traz inúmeros prejuízos ao interesse público e coletivo, na medida em que fere o direito dos demais pacientes devidamente regulados pelo SUS, além de desestruturar a gestão da política pública de combate à pandemia, desrespeitando o conhecimento técnico dos profissionais da saúde e a competência dos órgãos de saúde aptos a estabelecer a ordem prioritária de ocupação dos leitos.

Não somente isso, mas a soma destas decisões traz ainda prejuízos financeiros ao ente federado. Há decisões liminares que, numa única demanda, determinam a imediata internação em leito de UTI e o bloqueio de 250 mil reais nas contas do Município. Se a maioria das tutelas de urgência determinasse semelhante medida, o Município teria mais de 14 milhões de recursos bloqueados, que poderiam ser usados para o combate à pandemia. Registre-se que estes bloqueios sequer garantem a internação do paciente, visto que não há vagas em estabelecimento particular e em outros Estados. Com a judicialização de decisões que deveriam ser tomadas por quem está do lado de dentro dos hospitais, a transferência da gestão destes recursos dificulta ainda mais a execução da política pública sanitária municipal.

Neste cenário, a Procuradoria-Geral do Municipal de Cuiabá ingressou com pedido de suspensão de segurança, no Tribunal de Justiça de Mato Grosso e no Superior Tribunal de Justiça, visando afastar as decisões liminares que determinavam imediata internação sem observar as diretrizes do SUS, para preservar a igualdade ao acesso à saúde, o próprio SUS, os profissionais da saúde e a competência do Executivo em gerir a referida política pública. 

A medida foi deferida pelo STJ, que suspendeu todas as decisões judiciais que determinavam a internação em leito de UTI para tratamento de COVID-19 em Cuiabá, estendendo os efeitos para outras decisões similares no âmbito do TJMT.  Como bem pontuado pela decisão do Ministro Humberto Martins, a falta de leitos não se deu por má gestão da administração pública, mas pelo infeliz colapso em diversas unidades da federação.

Sabemos que o julgador não pode ficar inerte quando chamado a efetivar direitos, especialmente nestas ações individuais. Mas a situação é atípica e grave. Sim, deve ser respeitado o direito do autor, mas também deve ser respeitado o Sistema Único de Saúde e o direito dos demais pacientes que aguardam um leito de UTI, e por quaisquer razões não tiveram a oportunidade de judicializar suas causas. Sopesando as decisões, deve prevalecer a ótica de quem está do lado de dentro da situação e tem uma visão técnica e macro do sistema.

Não é apenas preservar a autonomia municipal, como destacado pelo Ministro, mas principalmente, levar justiça a todos os cidadãos, garantindo a igualdade de acesso ao SUS a todos, respeitando o conhecimento técnico dos profissionais da saúde e as legislações e normativas que regulam um fortíssimo sistema gratuito de saúde no Brasil.

Suspender as liminares de UTI é impedir que pacientes furem a fila, com aval do próprio Judiciário. É garantir um acesso igualitário ao SUS, evitando priorizar um atendimento menos grave simplesmente porque ele recorreu ao Judiciário. Não podemos ter um SUS de duas portas. O acesso à justiça e à saúde deve ser igual a todos.

Bianca Botter Zanardi é advogada, procuradora do município de Cuiabá e diretora da Uniproc. Contato: [email protected]